Descobri agora, depois dos cinqüenta anos, que pai é imperfeito. Ele morre.
Um péssimo exemplo que me recuso a seguir. Desaparece da vida da gente e deixa um vazio imenso. Faz-nos sentir culpados. Deixa-nos os questionamentos. Aqueles que não tivemos tempo de discutir com ele.
O meu tinha oitenta e um anos. Vivíamos separados fisicamente por uma distância de quatrocentos quilômetros mas tínhamos uma identidade forte. Nos visitávamos com certa freqüência e o telefone foi um instrumento eficaz em nossa convivência.
Dos quatro primeiros filhos, da união com a minha mãe, eu era o preferido. Isto chegou a me incomodar em certa época porque sentia o ciúme de meus irmãos. Depois descobri que era assim e pronto. Com uma outra companheira, a última da vida dele, teve seis filhos e agiu do mesmo jeito. Escolheu a terceira filha como preferida e, com a morte desta, transferiu a preferência para o sexto e último filho. Pelo menos dos que eu conheço.
Tinha fascínio por mulheres. Tanto que depois da separação de minha mãe, com sete ou oito anos de casado, se apaixonou e desapaixonou uma centena de vezes. Trocava de companheira três vezes por ano. Nas nossas conversas de adulto, quanto questionei este comportamento que manteve até por volta dos cinqüenta e cinco anos, ele resumiu a própria filosofia: “Mulher só serve quando sabe perdoar. Quando entende a minha necessidade e me conforta depois das minhas indecisões”.
Indecisão para ele era não saber se ficava com a nova conquista ou se voltava para casa. Era confuso no amor às mulheres mas tinha charme. As namoradas, mesmo traídas, o adoravam. Lembro de uma época em que ele andava com três namoradas. Iam em nossa casa juntas e até faziam gracinhas com nós as crianças, para agrada-lo certamente.
Era amante da liberdade. Nunca censurou, que eu me lembre, a nenhum filho, por esta ou aquela atitude. Lá pelos meus quinze ou dezesseis anos ele me flagrou fumando com a turminha de colégio. Quando o vi se aproximando, era a minha vez de dar uma tragada. Fechei na mão o resto de um cigarro que passava de boca em boca. Ele chegou, disse alguns gracejos machistas com relação às meninas que estavam mais adiante, e seguiu no seu passo cadenciado. Foi uma tortura agüentar uma brasa de fumo na palma da mão.
À noite, já em casa, ele me sapecou a pergunta mais cretina que pude ouvir: “como está a sua mão, meu filho, queimou muito?”. E acrescentou que se eu quisesse fumar que aprendesse a colocar o cigarro entre os dedos, com elegância. Olhou meu ferimento, passou leite de magnésio e não fez mais nenhum comentário.
Na terceira série do ginásio fui reprovado por meio ponto em matemática. Desabei ao ver o quanto eu tinha brincado naquele ano, querendo ser artista, tocando violão, saindo com a turma para as primeiras festas noturnas. Nesta época já estávamos separados. Eu em Teresina e ele no interior do Maranhão, trabalhando e correndo atrás de novas parceiras. Minha irmã mais velha, fofoqueira, deu a notícia a ele do meu fracasso.
Ele veio a Teresina e de mansinho deu um jeito de me dizer que apoiava o meu novo modo de vida, com cabelo comprido, violão debaixo do braço ensaiando as músicas de Geraldo Vandré e uma aparência desleixada mas chic para a época. Acrescentou que se eu quisesse estudar mais também tinha o apoio dele. Acho que foi o primeiro choro sentido que tive na vida e no ano seguinte virei professor de matemática. Só não tirei dez em todas as provas porque em duas o professor me perseguiu e tirou meio ponto, acho eu.
Viajamos muito juntos. Quando eu pedia para dirigir, alegando que ele podia estar cansado, respondia que eu ainda não sabia andar em estrada. Fiquei algumas vezes aborrecido mas hoje sei que nunca passei de uma criança para ele. Essa coisa que só pai pode entender.
Nos últimos anos, quando a idade carimbou as suas possibilidades, malandramente ele inverteu os papeis. Passou a ser meu filho mais novo. Meu e de meu irmão Afrânio, que mora no Rio de Janeiro. Consultava-nos para tudo e algumas vezes, tenho certeza, fez chantagem emocional para eu largar tudo e ir visitá-lo.
Antes da sua morte, no dia 19 de março, traído pelo coração, passamos vinte e oito dias juntos, em total cumplicidade. Dividia meu tempo entre o trabalho e a sua companhia. Ouvindo-o falar da vida, das mulheres e do trabalho que fez no Piauí, para implantar o serviço de transporte coletivo interestadual e intermunicipal pelas estradas federais. Ele foi um dos grandes do antigo DNER, atual DENIT. Ajudou a implantar esta repartição federal no Estado.
Orgulhava-se de ser um Cavalcante, de ter avós maternos italianos. Tinha o brasão e a história da família em um livro que folheei várias vezes. Mas também falava com orgulho, de acordo com o interesse, que tinha nas veias o sangue dos índios cearenses, por parte dos avós paternos.
Desconfio que meu pai nunca se preocupou em dar bons exemplos, porque nunca exigiu nem escondeu nada dos filhos. Nunca ditou normas. Não foi um hipócrita. Mas tenho a mais absoluta certeza que o único mau exemplo que nos deu foi a morte, porque escondeu o dia e a hora.
O seu último gesto para mim, antes de entrar na sala da cirurgia que se tentava para lhe dar melhor qualidade de vida, foi de um polegar esticado para cima como se dissesse: “ta tudo OK, haja o que houver ali dentro”.