sexta-feira, março 24, 2006

ENCONTREI MEU ÍDOLO

Acabei de receber de volta o computador que me fez muita falta desde domingo à noite. Uma chuvarada, com raios e trovões, segundo os técnicos, motivou a queima de uma certa placa de rede. É incrível descobrir que em meio a tanta tecnologia isto ainda seja possível. Mas na verdade o que estou fazendo agora é pedindo desculpa pela ausência e oferecendo uma crônica escrita em outubro de 2005, sob o título acima. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Rejeitei sempre a idéia de ter um ídolo. Imaginava que todos os ídolos têm pés de barro: na umidade, desmoronam. Foi assim desde a adolescência. Fortaleci a crença depois que assisti, no teatro Berliner Ensemble, em Berlim, a montagem da peça Galileu Galilei, de Bertold Brecht. Numa das passagens, o físico, matemático e astrônomo italiano Galileu, representado por um ator de voz forte e grave, respira fundo, olha no fundo dos olhos de um dos discípulos, e diz: “Pobre de um povo que precisa de um ídolo”. O discípulo o censurava por ter renegado, diante dos inquisidores da Igreja Católica, suas idéias de que o universo era heliocêntrico, ou seja, que o sol era o centro e tudo girava em torno dele. Galileu Galilei, acusado de heresia, livrou-se de beber cicuta, assinou um documento dizendo que tudo o que pregava era só uma hipótese, e ao voltar para casa este discípulo desesperado perguntara: “mestre e agora em quem vamos nos espelhar? Confiamos no senhor, temos certeza que o universo é heliocêntrico. O senhor é nosso ídolo e não deveria ter recuado.” Bem mas isto é uma história que faz parte da biografia de Galileu. O de que devemos tratar aqui é do meu recuo. Rejeitava ter um ídolo e agora confesso que o tenho. Trata-se de uma mocinha pobre, da periferia de Teresina, cujo exemplo lançou por terra todas as minhas convicções. Mas antes de apresenta-la quero explicar. Tudo começa em Nova Orleans, que ficou isolada do mundo no final de agosto de 2005, após a passagem do furacão Katrina. Com a cidade alagada, em quarenta e oito horas a população ficou sem água e sem comida. Cidadãos até então insuspeitos, pais de família exemplares, formaram gangues e se lançaram contra pessoas mais fracas, para tomar mantimentos e água potável. No noticiário o mundo ficou sabendo de mulheres que foram estupradas e espancadas porque se negavam entregar as migalhas de pão que escondiam para alimentar os filhos ou irmãos mais jovens. A civilização virou barbárie. Isto nos levou à reflexão de que o homem precisa de apenas 48 horas para voltar ao estado primitivo. Perder a razão e agir por instinto não é tão difícil. Depende apenas de circunstâncias. Corte rápido. Próxima cena Teresina. Estudantes de uma escola da periferia, usando planilhas e critérios elaborados pela ONU, fazem uma pesquisa e descobrem que, de todos os moradores de vilas e favelas da capital piauiense, pelo menos 32 por cento vivem abaixo da linha de pobreza. Cena seguinte: matéria da repórter Denise Freitas na TV Clube mostrando os números da pesquisa dos estudantes. Como personagem a reportagem buscou uma senhora que estava há dias ou semanas morando sob a rala sombra de um cajueiro, com três filhos. Supostamente abandonada pelo marido, que um dia saiu de casa dizendo que só voltava quando conseguisse emprego, a mulher foi despejada de um casebre e a única saída foi o cajueiro. Ali ficava perto de alguns conhecidos que a socorriam com a caridade do alimento. Tira-se daí a segunda conclusão: a violência urbana é fruto dessa diferença social. Como formar cidadãos, se 32 por cento das pessoas da periferia não têm certeza nem garantia de acesso ao mais elementar para vida digna? Mas na reportagem a principal personagem não aparece. Alegou que ia ser alvo de chacota na escola, onde já sofria toda sorte de preconceito dos colegas por não ter roupas decentes e um tênis para se enturmar com os mesmos padrões. Junto com a calça jeans surrada e o tênis rasgado, largando a sola, a menina de 15 anos mostrou em off o boletim escolar. Notas excelentes, garantia de aprovação em um ano em que perdeu o teto. E a comida de cada dia sempre foi incerteza. Tinha todas as desculpas para deixar o colégio, que fica no centro da cidade, a uma distância aproximada de nove quilômetros. Escola pública federal, CEFET, curso profissionalizante, que sabidamente tem uma grade curricular exigente. Natyelli da Silva, esta criança madura, revelo agora, é o meu ídolo. Derrotou a negou a bestialidade dos americanos de Nova Orleans, desmentiu a assertiva preconceituosa de que é a periferia pobre que produz bandidos e, mais que tudo, enfrentou as adversidades, se protegeu da investida dos jornalistas e dá exemplo de dignidade ao não desistir do futuro.

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